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Cicatrizes do íntimo

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E para quê exprimir? O pouco que se diz melhor fora ficar não dito.

Se eu bem pudesse compenetrar-me realmente e quanto a renúncia é bela, que dolorosamente feliz para sempre que eu seria!

Todas as citações desse texto são de Bernardo Soares, no Livro do Desassossego

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Da última vez, disse que as construções linguísticas comportam paradoxos distintos dos da realidade imanente. Atrelado a isso, apontei que o conflito entre a individualidade a alteridade é agravado pelo fato de que “não há espelho que nos dê a nós como foras, porque não há espelho que nos tire de nós mesmos”. A exemplo disto, falei que elaborar a estética do desalento já seria deformá-la, pois sua razão de existência é a própria resignação: aceitar o belo como tudo aquilo que existe e morre sem ser visto. Portanto, essa estética anseia por viver a realidade íntima do sonho, já que “nada pesa tanto como o afeto alheio”.

tumblr_n7i0ganJAs1qcr2gxo1_500Como construção linguística, o exemplo é válido. Outro modo de dizer isso é que a contemplação íntima não pode ser cantada; ou que a vida do sonho é silenciosa, porque externar é realizar – deixar de ser íntimo, corromper a própria natureza do sonho. Se o único ponto de contato entre o íntimo e a realidade imanente é nossa consciência, a desutilidade não pode se realizar; ao mesmo tempo que se realiza quando escrita, deixa de existir, pois passa a ser comunicacional, logo, teleológica. Portanto, se formássemos um movimento – uma vanguarda do desalento – e realizássemos essa estética, não seríamos um movimento. Eis um paradoxo para a realidade que não o é na linguagem.

A incompatibilidade entre esses dois domínios fica ainda mais evidente se supormos querer transformar o mundo e a arte através dessa estética; por exemplo, constituir uma vanguarda. Como partilhar o íntimo? Como tornar aquilo que é exclusivamente individual um objetivo comum, partilhado? O que é um sonho-em-alheiamento se não o deixar-de-ser-sonho? Esse mesmo paradoxo é a razão pela qual as utopias nunca se realizarão: mera incompatibilidade ontológica. Justamente por serem utopias, jamais serão realidade – e isso é simultaneamente um fato e uma construção linguística.

Formaríamos, nessa hipótese, um movimento cujo único elo seria o de estarmos atentos ao nosso próprio íntimo, o que, na realidade, não constitui elo algum. Na linguagem, seríamos um “grupo de desagrupados”. Na realidade, seríamos um conjunto inexistente. Seríamos um grupo da mesma maneira que uma formiga, um baobá e um chimpanzé; que não resguardam entre si nenhuma semelhança senão a brutal generalização de constituir um grupo de “seres vivos”. A linguagem permite esse nível de abstração que não seria possível no real.

21_seconds_again_by_retr0spect“Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos”, diz Bernardo Soares, e a realização do íntimo não é quista, “porque o mais, por estar realizados, pertence ao mundo e a toda gente”. O mero deixar de ser sonho já é trair aquilo que lhe é próprio. Ainda assim, buscamos contato. Desejamos que a cicatriz de termo-nos traído seja reconhecida pelo íntimo de outro: isto é arte. De alguma maneira inútil e absurda, há “a sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser útil, de nunca executar uma obra que por força seria bela, de abandonar a meio caminho a estrada certa da vitória”.

O belo é o absurdo. Bernardo Soares canta “a glória das obras que se perderam e nunca se acharão, dos tratados que são títulos apenas hoje, das bibliotecas que arderam, das estátuas que foram partidas”. Publicar-se é uma ignóbil necessidade, mas só é mérito de incoerência se alguém um dia nos ler. Publicar-se sem leitores, eis o belo: o fruto do íntimo sem ter-se corrompido de outras consciências, de outros íntimos. Assim, inevitavelmente, ele afirma que escreve porque reconhece que o livro é imperfeito: “calado seria a perfeição; escrito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo”.

Há algum tipo de pulsão de mentira, de inutilidade, de absurdo que nos motiva à arte. E essa pulsão também trai a si, porque à arte é imposta ser inútil. Mas, eu suspeito, esse é o inevitável fim de toda tentativa de capturar o que são as coisas grandiosas da existência – como a vida ou a arte –, trair-se. Mentir a si próprio. Se é assim, “porque defendo a inutilidade, o absurdo, – eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para trair a minha própria teoria”.

Se falo em desutilidade, como falei no meu post anterior, é apenas para mostra-la como delírio e delirar – porque aquilo que me traz aqui, em mim, é sonho e é absurdo. Quando realizado nesse texto, não. Talvez o que pulsa em alguém a ponto de ler isso, seja também sonho e absurdo. Aquilo que é desútil efetivamente não existe em uma realidade compartilhada, assim como o sonho.

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